
EDUARDO OGALVES
EDUARDO OGALVES

A ÚLTIMA CRIAÇÃO DE MARY SHELLY
Prezado Leitor, você terá contato semanalmente com um capítulo do romance 'A última criação de Mary Shelly', do autor Eduardo Ogalves, voltado para a temática 'Ficção Histórica'.
Eduardo Ogalves é Técnico de Enfermagem, graduado em Pedagogia, Letras - autor de dois livros: "Incondicional - Humanos buscam cura, anjos querem perdão" e "Sol Manchado" (contos), ambos pela Editora Uiclap.
-- Acompanhe de perto...
LONDRES, JANEIRO DE 1818 (Cap. 11)
Mary fechou os olhos e, por um instante, o laboratório desapareceu. O som do fogareiro, o peso do luto, até mesmo o corpo imóvel sob o lençol branco — tudo foi engolido pela lembrança de uma terra distante.
O ar quente e úmido do Brasil voltava a envolver sua pele, trazendo o zumbido constante de insetos e o perfume agreste da mata. A viagem até lá fora longa, atravessando oceanos e tempestades, mas nada a preparara para o choque de cores e sons daquele mundo recém-colonizado. O verde parecia mais denso, mais vivo — quase hostil.
Mary lembrava-se do desembarque: as construções toscas de madeira no porto, os marinheiros supersticiosos que sussurravam histórias sobre deuses escondidos na floresta, e o calor — o calor que parecia vir de dentro da terra, pulsando sob cada pedra e folha.
Ela percorreu aldeias improvisadas, acompanhada apenas de um guia mestiço que pouco falava, mas conhecia os caminhos como quem conhece as linhas da própria mão. As noites eram longas e cheias de sons estranhos: gritos de aves invisíveis, estalos de galhos partidos por animais furtivos, e, às vezes, o lamento distante de alguma criatura que ela não ousava nomear.
Foi numa dessas noites, quando a lua era apenas um risco pálido no céu, que ela viu pela primeira vez o fungo. Ele crescia ao pé de uma árvore retorcida, sua superfície pulsando de um brilho quase imperceptível, como se respirasse. Um cordyceps diferente de tudo que Mary já tinha estudado na Europa — e diferente o suficiente para despertar nela tanto fascínio quanto um calafrio.
Ela se agachou, prendeu o cabelo num coque improvisado para afastá-lo da brisa pegajosa e retirou o caderno de anotações. Ali, na escuridão da floresta, começou o que viria a ser o segredo mais perigoso de sua vida.
Mary lembrava-se das palavras do guia naquela noite. Ele hesitara ao vê-la recolher a amostra, os olhos refletindo o fogo da lamparina. Murmurou algo em uma língua que ela não compreendeu completamente, mas o tom era claro: aquilo não pertencia a mãos humanas.
O som do laboratório — uma gota de líquido caindo em um tubo — trouxe Mary de volta ao presente por um instante. Mas ela afundou novamente na memória: o peso do frasco guardado no bolso de couro, o retorno ao navio com o coração acelerado, e o pressentimento de que aquele pequeno pedaço de floresta brasileira carregava algo capaz de desafiar as leis da natureza. (12/09/2025)
LONDRES, JANEIRO DE 1818 (Cap. 01)
A temperatura estava baixa, responsável por um frio de trincar os ossos para quem não se protegesse — detalhe que não era a maior preocupação da Dra. Mary naquela madrugada. Pelo contrário, o frio era, naquele momento, seu maior aliado. A mesma temperatura que promovia o frio intenso era a responsável por preservar qualquer cadáver que um dia tivera o privilégio de ser aquecido por um sangue vivo. Naquele instante, a vida era um privilégio, e a Dra. Mary, em suas teorias, estava a poucas horas de controlar esse privilégio de uma forma diferente.
Sua preocupação não era a estranheza da sociedade londrina em se perguntar aonde ela iria tão tarde, naquela noite chuvosa e fria. Até porque dificilmente alguém passaria por ela naquele horário, principalmente no caminho que seguia. Seu destino era afastado do centro da cidade: era necessário percorrer um curto trajeto pela avenida principal, para em seguida se enfiar em becos e atalhos até chegar ao destino. Ela não sentia medo de andar sozinha tão tarde. Daquele modo em que estava, não precisava temer. Não seria um alvo, como estava acostumada em um dia comum.
Talvez cruzasse com algum cachorro vira-lata, tentando se esconder em algum vão entre uma escadaria e outra, ou algum bêbado que, após exagerar nas doses, adormecera no trajeto de volta e decidira tirar um cochilo sobre o meio-fio de uma das principais avenidas londrinas. E mesmo que, por acaso, algum casal de amantes, perdidos na inocência do primeiro amor, perambulasse pelas avenidas e ruas de Londres e se deparasse com a Dra. Mary — se a conhecessem ou tivessem alguma amizade com ela — não a reconheceriam. Um homem de masculinidade frágil talvez até a olhasse com desconfiança, segurando forte a mão da companheira e, quem sabe, mudasse de lado na avenida, movido por um ciúme doentio.
Não bastasse a chuva, que se intensificava, o vento forte a envolvia cada vez mais, como um abraço áspero. Seus longos cabelos estavam sufocados sob o chapéu, contidos também por uma meia-calça, na qual ela cortara uma das pernas para improvisar uma touca. Precisava parecer um homem. Suas botas, o sobretudo e o chapéu já estavam completamente encharcados. Sentiu alívio ao lembrar que poderia ser pior se estivesse com o longo e pesado vestido preto: além de encharcado, estaria enlameado durante o longo percurso.
Seguiu apressada por um quarteirão onde havia uma construção ainda em estágio inicial — segundo a Gazeta de Londres, levaria anos para ser concluída, mas se tornaria a maior torre com relógio de Londres, quem sabe até do mundo. Enquanto passava, a lembrança da manchete do jornal a fez ficar preocupada com o horário. A madrugada era seu escudo, sua forma de ficar quase invisível, a melhor maneira de fazer o que precisava ser feito sem plateia, especulações e, principalmente, sem acusações ou julgamentos com provas que poderiam levá-la à morte.
A Dra. Mary estava decidida. Em meio a milhares de pensamentos, a ciência e a razão caminhavam lado a lado, trabalhando juntas. Uma seria o consolo da outra, pois a razão tentava se manter firme em sua mente, tão firme que não dera tempo sequer de viver sua dor. O consolo existira antes mesmo da dor. Ela previu a dor e já havia planejado o consolo muito antes, em uma de suas viagens como pesquisadora à Amazônia — a imensa floresta pertencente a uma colônia explorada na América do Sul. Ao finalizar o trajeto pelo quarteirão, atravessou a avenida e seguiu por uma rua paralela, onde os postes de iluminação, sustentados por alças de aço em forma de arabesco, seguravam lampiões — em sua maioria, já sem chamas. A paisagem de construções e prédios barrocos foi dando lugar ao breu e ao silêncio da mata úmida, que cercava o imenso terreno sombrio com seus moradores pacatos e silenciosos. Qualquer canto de cigarra que viesse das árvores parecia um grito, comparado ao silêncio opressivo que dominava o ambiente, independentemente da hora. Silêncio esse que era rompido apenas nos momentos em que a natureza cobrava seu tempo — sempre exaurido, segundo a lista da finitude da vida. Lista essa conferida rigorosamente pela Morte. Após sua conferência, não havia exceção, fosse conde, burguês ou plebeu: o silêncio sempre era rompido por um pranto desesperado.
Era apenas Mary e a noite, chuvosa e fria. Por mais que se ouvissem as gotas de chuva batendo nas folhas ao redor, internamente o silêncio travava um conflito com seus pensamentos. Seguindo pela rua deserta, avistou, a alguns metros, os gigantescos arabescos de aço preto que se encontravam no centro do grande portão — o limite que separava aqueles que ainda tinham o privilégio do tempo daqueles cujo tempo se esgotara, forçados a abraçar a própria inexistência. Mary se surpreendeu quando sentiu um toque em seu ombro. Ela não havia pensado em um plano B ou C. Mary tinha apenas um objetivo e precisava realizá-lo a qualquer custo, incluindo a própria vida. Levou a mão direita à parte interna do sobretudo, procurando o cabo da chave de fenda entalhada pelo marido. Mary a ajeitara de modo a não a incomodar, pois sabia que precisaria percorrer o trajeto com pressa, sem perda de tempo. Como uma serpente prestes a dar o bote, com o objeto em punho pronto para se defender, ela se virou... (09/07/2025)
LONDRES, JANEIRO DE 1818 (Cap. 02)
— Mary! Calma, calma. Sou eu!
O reconhecimento daquela voz, trouxe a Mary um alívio:
— Percy?
— Sim, querida! Sou eu.
Nesse momento, Mary dá um suspiro de alívio, fisicamente ele sente a tensão deixar seu físico e emocionalmente ela desaba. Ela já havia se acostumado a ser forte, não a desabar. Suas mãos deixam de procurar a chave de fenda, são retiradas do bolso e vão ao encontro do corpo quente, porém úmido de Percy. O choro acontece no mesmo momento do abraço.
Enquanto ele retribui o abraço e acaricia a cabeça de Mary derrubando o chapéu que estava sobre a cabeça dela, ele tenta se explicar:
— Fiquei preocupado e precisei vir. Não consegui fingir estar tudo bem.
— Mas e minha irmã? Seus pais? — Entre lágrimas ela continua entrelaçada em seus braços.
— Eu disse a eles que estava exausto e que me juntaria a você no quarto. Disse que precisávamos de um momento só nosso. Diante da situação e pelo horário eles compreenderam, mas insistiram em pernoitar em nossa casa. Me despedi de sua irmã e de meus pais, subi a escadaria, e me tranquei no quarto. na descida pela janela, acabei arranhando meu braço, mas nada preocupante.
Percy frente a frente com Mary, segura o rosto dela olhos a olhos com o dele:
— Mas eu te disse para não se preocupar, Percy! Se formos pegos ou levantarmos qualquer tipo de suspeita, poderíamos ser enforcados em praça pública!
— É um momento perturbador Mary! Quando imaginei você entrando neste cemitério sozinha e…Que Deus nos perdoe — Percy olha para o céu negro, manchado de gostas de chuva que vem ao encontro de seu rosto — Não tenho nem coragem de descrever o que estamos prestes a fazer. Por que não desistimos disso, seguimos nossa vida vivendo um dia de cada vez Mary?
Mary empurra Percy, limpando com o punho das mãos as últimas lágrimas que haviam escorrido em seu rosto, com passos pesados, segue mata adentro enquanto fala de forma furiosa:
— Percy Shelley, se você veio até aqui para tentar me convencer a desistir, espero com toda força de desejo que tenho em meu coração, que você se decepcione com você mesmo. Eu não mudarei de ideia! Eu não vou desistir!
Enquanto levava as duas mãos à cabeça, andando de um lado para o outro no meio da rua enlameada, Percy observava objeto por objeto ser arremessado de dentro da mata para fora. Primeiro, uma pá manual, em seguida, um enxadão de lâmina larga com cabo de madeira, um saco plástico com alguns cobertores dobrados dentro, e por último, sai Mary, com uma carrinhola apoiada nos braços.
— Por mais que ache essa situação um tanto absurda, Mary. Jamais te deixaria enfrentar tudo isso sozinha. — Percy tenta amenizar o stress de Mary sem sucesso.
— Mesmo se deixasse — responde ela enquanto organiza as ferramentas e todas as tralhas sobre a carriola e continua: — eu o faria do mesmo jeito Percy! Enquanto éramos somente eu e você, o mundo amanhecia e dada continuidade a existência de nossas vidas de uma maneira, mas… — sua voz embargou, sua respiração fica ofegante, e toda sua fortaleza desaba sobre o chão de lama, seus joelhos encontram o chão e as lágrimas se libertam de dentro de sua alma em luto e banham seu rosto, se misturando com toda a umidade que a chuva lhe trouxe, porém essa carrega uma dor — Ele era, era… era tudo que tínhamos. Era o nosso…
Percy se ajoelha ao seu lado, guia a cabeça de Mary até seu ombro, tira todas as ferramentas de suas mãos e guia os braços dela para um abraço. Por dentro ela caia em um penhasco onde teria soltado a mão do seu único filho, e por fora, ela estava fria que não havia diferenciação de sua frieza com uma madrugada fria, congelada e, talvez seu abraço não curasse sua angústia, pois ele também estava ferido, perdido em um luto sem solução. Era aquele o fato a se aceitar. Não haveria um milagre ou uma luz ao fim do túnel. Percy tentou ser forte, mas naquela madrugada, sua fortaleza também desabou. O que a fé poderia fazer já se fez, nem sempre a fé coopera para o que se espera, talvez o teste dela também seja um propósito sabe -se lá de quem? Ele também chorou. (16/07/2025)
LONDRES, JANEIRO DE 1818 (Cap. 03)
A chuva havia diminuído, mas o cheiro de terra molhada era mais forte do que nunca. O barulho da carriola sendo empurrada por entre os galhos e as pedras misturava-se ao som abafado das poças sendo pisadas. Mary caminhava na frente, determinada, como se cada passo fosse o único possível. Percy a seguia em silêncio, empurrando a carriola com as ferramentas e os cobertores dobrados com cuidado quase cerimonial.
Chegaram ao portão de ferro do cemitério. A estrutura, enferrujada e velha, emitiu um rangido fúnebre ao ser empurrada. Mary nem hesitou. Sabia o caminho de cor. Contara os passos durante o enterro. Agora os repetia como se recitasse um verso trágico de memória.
Pararam diante do túmulo. Não havia nome na lápide. Mary pedira isso. Só as iniciais, para confundir os olhos alheios. A terra parecia ter afundado um pouco, como se chorasse também. Mary se ajoelhou, passou os dedos sobre o pequeno "W.S." gravado em pedra e fechou os olhos por alguns segundos, sem dizer nada. Percy apenas aguardou. Sabia que aquele gesto breve guardava o peso de todas as palavras que ela não conseguia mais pronunciar.
Mary pegou a pá manual. Percy se adiantou com o enxadão.
— Deixe isso comigo por enquanto — disse ele, com a voz baixa, porém firme.
Mary assentiu, sem discutir. As primeiras pazadas foram lentas, cuidadosas. A terra estava fofa pela chuva, mas o frio da madrugada endurecia as camadas mais profundas. Cada golpe do enxadão parecia acordar fantasmas soterrados — do corpo, do luto, da escolha.
O tempo ali não era mais o mesmo. Meia hora? Uma hora? Não saberiam dizer. Quando a madeira do pequeno caixão enfim apareceu, ambos pararam. Suavam, apesar do frio. O silêncio voltou a pesar. Percy limpou a superfície do caixão com um pano e apoiou as mãos sobre ele, como se pedisse desculpas.
Mary se ajoelhou e tirou os pregos com um pé de cabra pequeno, embrulhado em tecido escuro. Quando a tampa se soltou, o cheiro não era forte — a baixa temperatura e o rápido sepultamento haviam poupado o corpo do filho de uma decomposição cruel.
William estava ali. Rígido, mas com os traços suaves ainda reconhecíveis. As pálpebras cerradas como se dormisse. Os lábios levemente entreabertos. Mary sufocou um grito e levou a mão à boca. Percy sentiu o mundo girar. Mas não podiam ceder agora.
Com todo cuidado, pegaram o corpo. Enrolaram-no em dois cobertores limpos. O tecido ainda cheirava a alfazema e carvão. Percy carregou o pequeno embrulho com a delicadeza de quem segura um recém-nascido.
Mary rapidamente começou a cobrir novamente o buraco. Alternavam-se, usando as ferramentas e as mãos. Compactaram a terra, espalharam folhas, galhos secos, e até jogaram por cima pequenas pedras que haviam recolhido no caminho. Era necessário disfarçar. O mundo não podia saber. Ainda não.
Quando terminaram, Mary recolocou a lápide e, de forma meticulosa, retirou do casaco um vidro com tinta escura e um pincel fino. Retocou as iniciais. W.S. ainda estava ali. Para o mundo, ele continuava ali.
O caminho de volta foi silencioso. O corpo envolto nos cobertores descansava sobre a carriola, agora puxada por Mary. Percy a iluminava com uma lanterna a óleo, o vidro embaçado pela neblina que começava a surgir do chão.
Ao chegarem à cabana nos fundos da propriedade — o laboratório improvisado que Percy preparara com semanas de antecedência, apesar de ter jurado que aquilo nunca seria usado — entraram com o corpo e trancaram a porta.
Lá dentro, um fogareiro mantinha o ambiente levemente aquecido. Livros de anatomia, frascos com líquidos, fios, elétrodos rudimentares e uma bancada de madeira ocupavam o espaço. No centro, uma mesa larga coberta com lençol branco.
Mary olhou para Percy. Ele hesitava. Ela não.
Com gestos suaves, desembrulhou o corpo. Os olhos marejados já não escondiam mais nada. O filho deles jazia ali. E a promessa que fizera a si mesma, no instante em que ele parara de respirar, ainda pulsava viva:
"Eu te trarei de volta."
Percy se aproximou, estendeu a mão e segurou a dela. Um pacto silencioso. A ciência, a loucura, o amor — tudo estava ali. E já não havia retorno. (23/07/2025)
LONDRES, JANEIRO DE 1818 (Cap. 04)
Dentro do laboratório, o silêncio pesava tanto quanto o luto que Mary carregava nos ombros curvados. A brisa fria que entrava por uma pequena fissura da janela fazia tremular a chama do fogareiro, projetando sombras trêmulas sobre os frascos e as anotações espalhadas. O tempo ali não era mais medido em horas, mas em batimentos — ou na ausência deles. Mary ajeitou cuidadosamente o corpo do filho sobre a mesa coberta com o lençol branco. Seus dedos tremiam, mas não hesitavam. Percy, ao fundo, preparava a substância com que ambos vinham trabalhando havia semanas: a solução extraída do cordyceps, um fungo raro, obtido nas matas da colônia, onde Mary estivera em expedição. Um organismo que, por algum capricho sombrio da natureza, era capaz de reanimar insetos mortos, fazendo com que seus corpos se movessem, mesmo que a consciência já tivesse se desfeito há muito tempo. Mas desta vez, não era um inseto. Era William.
— A concentração está maior… — murmurou Percy, enquanto coava a substância por um pano escurecido, como se a própria luz não devesse tocá-la. — Três vezes mais potente do que a anterior.
Mary assentiu, os olhos cravados no pequeno peito imóvel do filho. Ela tocou a pele dele — ainda fria, mas não gélida. A conservação havia sido eficaz. Uma lâmpada a óleo os iluminava fracamente, e sob sua luz tremeluzente, o laboratório parecia um altar profano, consagrado não à vida ou à morte, mas ao impossível. Em uma das bancadas, repousavam várias seringas rudimentares, tubos de vidro, eletrodos conectados a uma bobina improvisada, e um diário de couro aberto sobre páginas manchadas de tinta e esperanças. Percy trouxe o frasco com o extrato do fungo até Mary. O líquido tinha um tom púrpura-escuro, quase negro, viscoso como se a própria noite tivesse sido destilada ali dentro.
— Você tem certeza? — perguntou ele, a voz grave, quase um sussurro.
— Eu não posso não tentar — respondeu ela, os olhos fixos no filho. — Ele era nosso mundo.
Percy preparou a seringa. Introduziu a agulha em uma das veias ainda visíveis no braço pálido do menino. A inserção foi feita com delicadeza, como quem toca um relicário. Mary segurava a mão do filho, enquanto Percy injetava, milímetro por milímetro, a substância viva.
O líquido se espalhou sob a pele como tinta sendo sugada por papel seco. Por alguns segundos, nada aconteceu. Mary correu para a alavanca de indução elétrica. Os fios de cobre estavam conectados a placas metálicas posicionadas sobre o coração do garoto. Ela inspirou fundo, olhou uma última vez para Percy — que assentiu, resignado — e puxou a alavanca.
Um estalo seco cortou o silêncio.
O corpo de William tremeu levemente.
Mary ajustou a carga. Outra descarga.
Um espasmo nos dedos.
— Viu isso? — sussurrou Percy, aproximando-se, como se o menor som pudesse espantar o que quer que estivesse acontecendo ali.
Mary não respondeu. Suava frio. Mais uma descarga. Agora os olhos do menino se moveram sob as pálpebras. Quase imperceptível, como um resquício de sonho. Mas era algo. Ela se voltou rapidamente para o diário, rabiscando dados, tempo, reações. Percy segurava o pulso do garoto, procurando desesperadamente algum sinal de pulso. Nada ainda.
— A circulação... Talvez se combinarmos com o composto estimulante dos bulbos…
Mary já se antecipava, correndo até uma das estantes e derramando frascos sobre a mesa até encontrar o líquido âmbar que procurava. Misturou com precisão de alquimista a nova substância a um segundo tubo e preparou uma nova injeção. Mais uma vez, a agulha perfurou a pele. Mais uma vez, o corpo estremeceu. As veias, até então quase invisíveis, começaram a escurecer, como se o sangue, ou algo como sangue, começasse a circular. Lentamente. Hesitante. Mary estremeceu. Percy deixou escapar um soluço engasgado. O pequeno tórax se ergueu — ou pareceria erguer-se, por menos de um segundo. Um reflexo? Um milagre? Ou apenas o último espasmo de um corpo em desequilíbrio? Ambos se entreolharam, presos entre a esperança e o horror.
— Ele está... — começou Percy, mas não terminou a frase.
No exato momento em que Mary se inclinava para tocar o rosto do filho mais uma vez, algo os interrompeu. Um som do lado de fora. Passos. Lentos. Gravados na terra molhada, arranhando as pedras do chão. Mary se petrificou. Percy correu até a lamparina e apagou a chama com os dedos. A cabana mergulhou na penumbra. Só o vapor quente do fogareiro ainda desenhava sombras pelo teto. Os passos se aproximaram mais. Agora junto à parede de madeira. Silêncio. E então — a maçaneta da porta girou. (30/07/2025)
LONDRES, JANEIRO DE 1818 (Cap. 05)
A maçaneta rangeu como um sussurro de ossos velhos, e a porta se entreabriu. Mary e Percy ficaram imóveis, o silêncio entre eles mais pesado que o ar rarefeito. Um feixe pálido de luar atravessou a fresta, iluminando a figura que surgia, envolta num xale escuro, molhado pela chuva fina.
— Sou eu… — disse uma voz baixa, firme, mas cansada. — Lorena.
Mary soltou o ar que prendia no peito. As pernas cederam por um instante, e ela apoiou-se na mesa para não tombar.
Lorena entrou rapidamente, fechando a porta com o cuidado de quem sela um segredo. Tirou o capuz, revelando os cabelos presos com pressa, o rosto úmido, mas atento. Seus olhos percorreram o ambiente — a criança deitada sobre a mesa, os frascos ainda tremendo, a sombra das bobinas, o suor escorrendo pelo pescoço de Percy.
— Ninguém desconfiou — disse ela, retirando as luvas de couro, cada gesto preciso como os de uma cirurgiã. — O sepultamento foi breve. Silencioso. O coveiro acreditou que vocês estavam em casa, arrasados. Até elogiaram sua "força", Mary.
A mulher assentiu, ainda sem voz. Seus olhos não deixavam William, cujo peito permanecia imóvel agora, mas com as veias ainda escuras, como um rio soterrado prestes a vazar.
Lorena se aproximou da mesa, analisando o cenário como alguém acostumada com o limite entre o absurdo e o possível. Ela passou os dedos sobre a testa da criança, depois sobre o pulso, avaliando temperatura, textura, resposta. Havia um respeito cerimonial em seus movimentos, como se também ela acreditasse que aquilo era, de algum modo, sagrado.
— Precisa se recompor — disse, agora dirigindo-se a Mary. — Ambos precisam.
Percy tentou protestar, mas a voz não lhe saiu da garganta. Seu rosto estava cinzento. Mary, enfim, olhou para Lorena como quem acorda de um transe.
— Não posso deixá-lo assim… ainda pode… ainda pode haver uma resposta…
— E haverá. — Lorena a interrompeu com doçura firme. — Mas não agora. Não assim. Você está vestida com as roupas de Percy desde o enterro. Precisa sair desse papel. Voltar a ser… você.
Mary vacilou, olhou para as próprias mãos — sujas de tinta, suor, fragmentos de fungo ressecado. Vestia um colete largo demais, calças amarradas por um cinto improvisado. O disfarce fora necessário para manter-se invisível, para entrar e sair da colônia sem levantar suspeitas. Mas agora… agora o luto não precisava mais de máscaras. Apenas de coragem.
— Eu… — ela começou, mas Lorena a cortou com um gesto.
— Vá. Há água quente na bacia. Peguei suas roupas no armário. Ele — disse, apontando para Percy com um leve sorriso — pode ajudá-la. Eu fico aqui. Cuido do que for preciso. Se houver qualquer mudança, se algo… se ele… — sua voz hesitou, só por um segundo — eu saberei.
Mary permaneceu imóvel por mais um instante. Depois, como se apenas agora o peso da noite inteira se revelasse, assentiu. Tocou os cabelos da criança uma última vez, sussurrando algo ininteligível, e caminhou para os fundos da cabana. Percy a seguiu, lançando um olhar rápido para Lorena antes de desaparecer pelas cortinas.
Sozinha com William, Lorena respirou fundo. O cheiro do extrato ainda pairava no ar, adstringente, úmido, impossível de esquecer. A lâmpada a óleo, agora reacesa, lançava sombras mais suaves. O menino parecia dormir — mas não era sono. Era espera. Entre o tempo e o abismo.
Lorena se sentou com delicadeza. Abriu o diário de couro, leu as últimas anotações de Mary. Pegou um dos tubos de vidro e girou levemente entre os dedos. Algo na mistura parecia… vibrar. Como um leve tremor, quase imperceptível.
Ela olhou para William.
— Você já foi embora — sussurrou, — mas talvez… talvez só tenha se perdido no caminho.
E começou a escrever. Documentar. Esperar. (06/08/2025)
LONDRES, JANEIRO DE 1818 (Cap. 06)
Lorena documentava com cuidado. Cada detalhe, cada oscilação de cor sob a pele translúcida do menino, o comportamento do extrato após a indução elétrica, a lentidão com que as veias se tornavam visíveis como rios antigos despertando sob um inverno eterno.
Mas aos poucos, à medida que o silêncio tomava novamente o laboratório, algo a distraía. Não era o som de máquinas, nem o farfalhar da chama ou o vapor que subia do fogareiro. Era a própria presença de William, estendido ali, em um repouso que não era nem vida nem morte.
Lorena deixou a pena repousar ao lado do diário e se aproximou da mesa. Seus olhos vagaram pelo rosto do menino — ainda belo, ainda doce, como se estivesse apenas dormindo depois de um dia longo de travessuras.
E então, sem se dar conta, começou a falar.
— Lembra quando você caiu do cavalo e disse que não ia chorar, mesmo com o braço torto?
Ela sorriu, amarga.
— A Mary entrou em pânico, seu pai desmaiou, e eu… eu ri. Fiquei nervosa. Rimos juntos, lembra? Depois você chorou, claro. Mas só quando já estava no colo dela. Quando se sentiu seguro.
O sorriso se desfez.
— Você era minha primeira companhia. Meu melhor amigo. O menino que dividiu comigo a primeira torta roubada, a primeira leitura proibida, o primeiro segredo. Crescemos juntos… e agora você tá aí. Silencioso. Frio. Como se o tempo tivesse corrido só pra mim.
Ela passou os dedos pela franja do menino, afastando-a com carinho, como quem ajeita o cabelo de um irmão antes de dormir.
— Você me ensinou a plantar cebolas, a mexer com pólvora, a roubar livros da biblioteca do colégio. Você me prometeu que nunca ia me deixar pra trás. E agora?
Seu rosto endureceu. Os olhos estavam marejados, mas não cederiam.
— Eu sei o que estão fazendo. E sei que talvez não devêssemos. Mas… se existe alguma chance de te ouvir rir de novo… qualquer que seja o preço, eu pago.
Um tremor percorreu o dedo de William. Ou foi apenas sua mão cansada que tremeu, ao tocá-lo?
Lorena não se mexeu. Continuou ali. Apenas escutando. Esperando. Ouvindo o próprio coração pulsar como um tambor solitário no escuro.
Foi então que o rangido do piso a despertou. Passos. Leves, mas apressados. Percy surgiu pela cortina, o rosto ainda marcado pelo cansaço, mas com algo mais no olhar: tensão, talvez incômodo.
— Lorena… — disse, num tom baixo, como quem tenta manter as palavras longe dos ouvidos da criança adormecida. — Você… avisou seus pais de que viria pra cá?
Ela o encarou, confusa.
— Não. Não falei nada. Por quê?
Percy hesitou um segundo, e então soltou:
— Sua mãe está à porta. Está procurando por você.
Lorena empalideceu.
Por um instante, tudo pareceu paralisar outra vez — o tempo, o ar, o experimento, a própria esperança. Ela voltou os olhos para William, como se a criança pudesse lhe dar uma resposta. E então, com voz quase inaudível, murmurou:
— Ela não pode entrar.
E caminhou em direção à escuridão do corredor, onde o passado e o presente batiam à mesma porta. (13/08/2025)
LONDRES, JANEIRO DE 1818 (Cap. 07)
Vitória estava furiosa em frente a porta da casa da família Shelley. Enquanto Percy desaparecia corredor adentro, Vitória sondava a movimentada avenida do nobre bairro londrino, parecia ansiosa a qualquer olhar que tentasse decifrar o que acontecia naquele momento em frente a casa que no momento estava de luto.
- Me parece que você decidiu mandar em si mesma Lorena? Pensei mil coisas a respeito de sua integridade!
- Desculpe por não ter avisado à mãe. Vocês estavam dormindo e não queria acordá - los.
- O que você acha que vão pensar sobre uma moça que passa a noite fora de casa?
- Falando dessa maneira, parece que não conhece a própria filha mãe!
- Este é o problema! Eu te conheço. Esta sociedade não!
Lorena baixou os olhos, incapaz de sustentar o olhar da mãe. Sabia que Vitória não era mulher de aceitar meias verdades, mas também sabia que revelar demais seria colocar Mary e Percy em risco.
No corredor, Percy reapareceu. O rosto estava pálido, o corpo ainda rígido pela noite em claro. Olhou para Lorena com algo que misturava gratidão e receio.
- Obrigado por vir — disse, a voz baixa. — Mary está… descansando.
Lorena assentiu. Queria dizer mais, talvez explicar, mas qualquer palavra poderia ser ouvida por Vitória, e ali não havia espaço para confidências. Aproximou-se e apertou brevemente a mão de Percy, num gesto discreto, mas carregado de compreensão.
- Cuide dela. E… dele — murmurou, quase sem som. Sem mais nada a dizer, virou-se para a mãe.
- Podemos ir.
Vitória fez uma breve reverência contida ao senhor Shelley, sem permitir que a frieza de seu olhar se quebrasse. Então, as duas se afastaram pela rua, o som de seus passos abafado pelo cascalho úmido.
A casa das Lorelay estava silenciosa ao retornarem. Era manhã ainda, a claridade tímida atravessando as cortinas e lançando faixas douradas no chão encerado. O cheiro de pão fresco vinha da cozinha, mas Lorena sentia o aroma como se estivesse a quilômetros dali.
Vitória fechou a porta, pendurou o xale e, antes que a filha pudesse escapar para o quarto, pousou a mão firme sobre seu ombro.
- Lorena, eu sei que está escondendo algo. Não precisa me dizer. Mas saiba de uma coisa: esconder é um fardo. E se vai carregar, que seja com responsabilidade.
Lorena a encarou, o rosto imóvel, mas os olhos… aqueles denunciavam algo entre o medo e a determinação.
- Eu sei o que faço, mãe.
- Eu espero que sim. Porque certas escolhas não podem ser desfeitas.
Um silêncio espesso pairou entre as duas, quebrado apenas por um som distante vindo do andar de cima — passos pesados, o ranger da madeira, o abrir de uma porta. Vitória ergueu levemente o queixo, num gesto automático, como quem se prepara para um diálogo indesejado.
O pai de Lorena começou a descer as escadas, já com o colete ajustado, a barba ainda úmida do banho. Ao chegar ao último degrau, parou e franziu o cenho.
- Já acordadas e prontas a essa hora? — perguntou, desconfiado. — Aonde vão? Vitória respondeu com naturalidade ensaiada:
- Vamos à costureira. A Lorena precisa provar o vestido novo.
O homem assentiu lentamente, mas seu olhar demorou-se um segundo a mais sobre a filha, como se buscasse alguma verdade escondida naqueles olhos.
Lorena manteve o sorriso contido, o coração acelerado, enquanto se sentava à mesa para o café — imaginando se aquela desculpa ainda sustentaria o peso do que estava prestes a fazer. (15/08/2025)
LONDRES, JANEIRO DE 1818 (Cap. 08)
O caminho até a costureira foi percorrido em silêncio por alguns minutos. O frio da manhã arranhava a pele, e o barulho das carruagens ecoava distante. Vitória caminhava com o porte ereto, o olhar sempre atento ao redor, como se cada vizinho fosse um juiz em potencial.
Quando já se afastavam do bairro dos Shelley, Vitória falou, sem olhar diretamente para a filha:
— Nunca houve segredos entre mim e seu pai. E não deve haver entre nós também.
Lorena engoliu em seco. Suas mãos estavam frias dentro das luvas, e por um instante ela teve medo de que a mãe pudesse ouvir o martelar do seu coração.
— Eu não… — tentou dizer, mas a mãe levantou a mão, interrompendo.
— Não precisa me contar nada agora. Apenas entenda: segredos exigem um preço. E, quando forem revelados, que não seja tarde demais para você.
As palavras ficaram suspensas no ar, pesadas como chumbo. Lorena não respondeu. Continuou caminhando ao lado da mãe, com a mente longe dali — de volta ao laboratório, ao corpo sobre a mesa, à chama trêmula da lamparina.
A costureira as recebeu com a formalidade habitual, guiando-as até a sala de espera forrada de tecidos claros e manequins. O cheiro de linho e de flores secas impregnava o ambiente, e por um instante a rotina da vida comum parecia querer engolir o peso da noite anterior.
Vitória acomodou-se numa das poltronas, ajeitando o vestido com compostura. Lorena sentou-se ao lado, sentindo que o espaço era pequeno demais para conter tudo o que não podia ser dito.
— Um vestido novo — comentou Vitória, quebrando o silêncio. — Sempre é visto como futilidade. Mas às vezes um vestido é apenas… uma desculpa.
Lorena ergueu os olhos, atenta.
— Desculpa?
— Sim — respondeu a mãe, firme, mas sem dureza. — Desculpa para escapar de olhares, para proteger segredos, para se mover sem levantar suspeitas. Você não precisa me dizer o que esconde. Mas se for manter esse caminho… então use esta desculpa com sabedoria.
Um nó apertou a garganta de Lorena. O peso das palavras da mãe era quase um pacto não dito.
— Então… a senhora sabe? — arriscou, a voz baixa, quase um sussurro.
Vitória pousou a mão sobre a da filha.
— Eu sei apenas que há algo. E que um dia, cedo ou tarde, a verdade sempre encontra a superfície. Mas até lá… seja prudente.
O coração de Lorena disparou. Não havia acusação na voz materna, apenas uma aceitação amarga, como quem compreende que certos caminhos não podem ser impedidos, apenas acompanhados de longe.
— Prometo — murmurou Lorena, apertando a mão da mãe. — Um dia a senhora vai entender.
Vitória suspirou, recostando-se.
— Eu espero estar pronta para isso.
As duas permaneceram em silêncio, até que a costureira retornou com os tecidos e medidas, sem perceber o pacto silencioso que acabara de ser selado naquela sala de espera.
Para todos os outros, seriam apenas mãe e filha escolhendo um vestido. Mas para Lorena, era a máscara perfeita — o álibi que lhe permitiria voltar, vez após vez, ao laboratório de Mary Shelley e dar continuidade ao projeto que não poderia jamais ser comentado em voz alta.. (21/08/2025)
LONDRES, JANEIRO DE 1818 (Cap. 09)
O vestido fora encomendado, medidas anotadas, tecidos escolhidos com um cuidado quase cerimonial. Para quem observasse de fora, mãe e filha eram apenas duas damas cumprindo seus papéis sociais, inseridas na rotina previsível da cidade. Mas, por trás das cortinas, Lorena carregava a sensação de que havia firmado um pacto silencioso naquela sala de espera: a promessa de guardar segredo, ao preço de carregar uma responsabilidade maior do que qualquer idade poderia permitir.
Quando regressaram para casa, Vitória subiu diretamente ao quarto, deixando a filha com o álibi perfeito. Lorena retirou o xale, arrumou os cabelos diante do espelho, e, antes que a casa pudesse cobrar dela qualquer explicação, já estava de volta às ruas. O coração lhe batia acelerado, mas agora havia um traço de decisão em seus passos.
A tarde caía lenta, e o vento frio trazia o cheiro das fogueiras acesas pelas ruas secundárias. A cada esquina, Lorena olhava em volta, certa de que qualquer olhar mais demorado poderia descobrir o que não devia. Mas, quando enfim alcançou o portão da casa dos Shelley, sentiu o alívio doloroso de quem retorna ao ponto de onde jamais gostaria de ter saído.
Percy a esperava na entrada. O rosto estava abatido, mas havia uma estranha centelha em seus olhos. Ele não fez perguntas; apenas segurou o portão para que ela entrasse, como quem recebe uma cúmplice.
— Mary está no laboratório — disse em voz baixa. — Há algo que você precisa ver.
Lorena assentiu, sem ousar perguntar mais.
O corredor estava escuro, abafado, impregnado pelo cheiro de óleo e pelos resquícios de noite mal dormida. Ao fundo, a lamparina projetava sombras longas contra as paredes de madeira. Mary surgiu do laboratório, o rosto cansado mas iluminado por uma tensão viva, quase febril.
— Lorena — disse, tomando-lhe as mãos. — Ainda bem que veio.
A jovem notou o tremor nos dedos dela, a mesma energia nervosa de quando se está prestes a atravessar uma fronteira sem retorno.
Percy fechou a porta atrás deles. O barulho seco da tranca ecoou pela casa como um selo irrevogável.
— Temos novidades sobre o experimento — disse Mary, os olhos brilhando na penumbra. — Mas você só compreenderá quando vir com seus próprios olhos.
E sem mais explicações, os três desceram juntos pelo estreito corredor em direção ao coração da cabana, onde o impossível os aguardava sobre a mesa, entre frascos, anotações e o silêncio que antecede o desvelar de um segredo. (30/08/2025)
LONDRES, JANEIRO DE 1818 (Cap. 10)
O laboratório estava mergulhado em penumbra. O corpo de William permanecia coberto, deitado sobre a mesa, dentro de uma estrutura improvisada que mais parecia uma incubadora rústica: tubos conectados a frascos com líquidos, vapores subindo em espirais, e uma chama controlada mantendo o ambiente numa temperatura constante. O lençol branco que o cobria se movia quase imperceptivelmente ao sopro quente da circulação de ar.
Lorena manteve os olhos fixos naquela figura imóvel, o peito comprimido por uma sensação que oscilava entre fé e temor. Mary caminhava de um lado ao outro, os cabelos desgrenhados pela vigília, enquanto Percy anotava dados em silêncio.
Foi Mary quem quebrou o silêncio:
— Eu me preocupo com você, Lorena. Mais do que gostaria de admitir. — Sua voz estava embargada, mas firme. — Sua presença aqui a coloca em risco. Você tem pais, uma casa, uma vida inteira para defender.
Lorena respirou fundo.
— Eles não sabem. E não vão saber. Eu… encontrei uma desculpa. A costureira. Percy ergueu os olhos, intrigado. Mary, no entanto, apenas suspirou.
— Desculpas não duram para sempre. — Aproximou-se de Lorena e segurou-lhe os ombros com delicadeza. — Uma moça da sua idade ser vista entrando e saindo da casa dos Shelley… ainda mais agora, depois do enterro… você não imagina as línguas que podem se mover.
- Eu não me importo — rebateu Lorena, embora a voz tremesse. — O que me importaria seria abandoná-los agora. Deixar você e Percy sozinhos, deixar William sozinho. Se há algo que eu possa fazer, estarei aqui.
Mary a encarou demoradamente, e em seus olhos havia uma mistura de gratidão e dor. Percy desviou o olhar, talvez para esconder a emoção, talvez para não testemunhar o peso daquele pacto silencioso.
— Você me lembra de mim mesma — murmurou Mary. — Impulsiva, obstinada… e disposta a atravessar o que for preciso para desafiar o mundo.
Houve um silêncio carregado, quebrado apenas pelo sopro contínuo da chama aquecendo o pequeno espaço da incubadora. O lençol que cobria William parecia vibrar de tempos em tempos, como se o tecido fosse atravessado por uma respiração oculta, mas ninguém ousava comentar em voz alta.
Mary voltou-se para a bancada, pegou o diário de couro e o abriu em uma página marcada.
— Talvez seja hora de vocês saberem como tudo começou. — Sua voz tinha o peso de uma confissão, mas também a solenidade de uma revelação. — Antes de William adoecer, antes mesmo de sonharmos com isto… houve uma viagem.
Percy levantou os olhos, tenso. Lorena se inclinou para frente, sentindo o ar no laboratório ficar ainda mais denso.
Mary fechou o diário, repousando a palma da mão sobre a capa como se segurasse um segredo vivo ali dentro.
— Eu precisei viajar a um país recém-colonizado. Um lugar chamado… Brasil.
E o silêncio que se seguiu pareceu mais grave do que qualquer resposta possível. (02/09/2025)
LONDRES, JANEIRO DE 1818 (Cap. 11)
Mary fechou os olhos e, por um instante, o laboratório desapareceu. O som do fogareiro, o peso do luto, até mesmo o corpo imóvel sob o lençol branco — tudo foi engolido pela lembrança de uma terra distante.
O ar quente e úmido do Brasil voltava a envolver sua pele, trazendo o zumbido constante de insetos e o perfume agreste da mata. A viagem até lá fora longa, atravessando oceanos e tempestades, mas nada a preparara para o choque de cores e sons daquele mundo recém-colonizado. O verde parecia mais denso, mais vivo — quase hostil.
Mary lembrava-se do desembarque: as construções toscas de madeira no porto, os marinheiros supersticiosos que sussurravam histórias sobre deuses escondidos na floresta, e o calor — o calor que parecia vir de dentro da terra, pulsando sob cada pedra e folha.
Ela percorreu aldeias improvisadas, acompanhada apenas de um guia mestiço que pouco falava, mas conhecia os caminhos como quem conhece as linhas da própria mão. As noites eram longas e cheias de sons estranhos: gritos de aves invisíveis, estalos de galhos partidos por animais furtivos, e, às vezes, o lamento distante de alguma criatura que ela não ousava nomear.
Foi numa dessas noites, quando a lua era apenas um risco pálido no céu, que ela viu pela primeira vez o fungo. Ele crescia ao pé de uma árvore retorcida, sua superfície pulsando de um brilho quase imperceptível, como se respirasse. Um cordyceps diferente de tudo que Mary já tinha estudado na Europa — e diferente o suficiente para despertar nela tanto fascínio quanto um calafrio.
Ela se agachou, prendeu o cabelo num coque improvisado para afastá-lo da brisa pegajosa e retirou o caderno de anotações. Ali, na escuridão da floresta, começou o que viria a ser o segredo mais perigoso de sua vida.
Mary lembrava-se das palavras do guia naquela noite. Ele hesitara ao vê-la recolher a amostra, os olhos refletindo o fogo da lamparina. Murmurou algo em uma língua que ela não compreendeu completamente, mas o tom era claro: aquilo não pertencia a mãos humanas.
O som do laboratório — uma gota de líquido caindo em um tubo — trouxe Mary de volta ao presente por um instante. Mas ela afundou novamente na memória: o peso do frasco guardado no bolso de couro, o retorno ao navio com o coração acelerado, e o pressentimento de que aquele pequeno pedaço de floresta brasileira carregava algo capaz de desafiar as leis da natureza. (12/09/2025)