
EDUARDO OGALVES
EDUARDO OGALVES

A ÚLTIMA CRIAÇÃO DE MARY SHELLY
Prezado Leitor, você terá contato semanalmente com um capítulo do romance 'A última criação de Mary Shelly', do autor Eduardo Ogalves, voltado para a temática 'Ficção Histórica'.
Eduardo Ogalves é Técnico de Enfermagem, graduado em Pedagogia, Letras - autor de dois livros: "Incondicional - Humanos buscam cura, anjos querem perdão" e "Sol Manchado" (contos), ambos pela Editora Uiclap.
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LONDRES, JANEIRO DE 1818 (Cap. 06)
Lorena documentava...
LONDRES, JANEIRO DE 1818 (Cap. 01)
A temperatura estava baixa, responsável por um frio de trincar os ossos para quem não se protegesse — detalhe que não era a maior preocupação da Dra. Mary naquela madrugada. Pelo contrário, o frio era, naquele momento, seu maior aliado. A mesma temperatura que promovia o frio intenso era a responsável por preservar qualquer cadáver que um dia tivera o privilégio de ser aquecido por um sangue vivo. Naquele instante, a vida era um privilégio, e a Dra. Mary, em suas teorias, estava a poucas horas de controlar esse privilégio de uma forma diferente.
Sua preocupação não era a estranheza da sociedade londrina em se perguntar aonde ela iria tão tarde, naquela noite chuvosa e fria. Até porque dificilmente alguém passaria por ela naquele horário, principalmente no caminho que seguia. Seu destino era afastado do centro da cidade: era necessário percorrer um curto trajeto pela avenida principal, para em seguida se enfiar em becos e atalhos até chegar ao destino. Ela não sentia medo de andar sozinha tão tarde. Daquele modo em que estava, não precisava temer. Não seria um alvo, como estava acostumada em um dia comum.
Talvez cruzasse com algum cachorro vira-lata, tentando se esconder em algum vão entre uma escadaria e outra, ou algum bêbado que, após exagerar nas doses, adormecera no trajeto de volta e decidira tirar um cochilo sobre o meio-fio de uma das principais avenidas londrinas. E mesmo que, por acaso, algum casal de amantes, perdidos na inocência do primeiro amor, perambulasse pelas avenidas e ruas de Londres e se deparasse com a Dra. Mary — se a conhecessem ou tivessem alguma amizade com ela — não a reconheceriam. Um homem de masculinidade frágil talvez até a olhasse com desconfiança, segurando forte a mão da companheira e, quem sabe, mudasse de lado na avenida, movido por um ciúme doentio.
Não bastasse a chuva, que se intensificava, o vento forte a envolvia cada vez mais, como um abraço áspero. Seus longos cabelos estavam sufocados sob o chapéu, contidos também por uma meia-calça, na qual ela cortara uma das pernas para improvisar uma touca. Precisava parecer um homem. Suas botas, o sobretudo e o chapéu já estavam completamente encharcados. Sentiu alívio ao lembrar que poderia ser pior se estivesse com o longo e pesado vestido preto: além de encharcado, estaria enlameado durante o longo percurso.
Seguiu apressada por um quarteirão onde havia uma construção ainda em estágio inicial — segundo a Gazeta de Londres, levaria anos para ser concluída, mas se tornaria a maior torre com relógio de Londres, quem sabe até do mundo. Enquanto passava, a lembrança da manchete do jornal a fez ficar preocupada com o horário. A madrugada era seu escudo, sua forma de ficar quase invisível, a melhor maneira de fazer o que precisava ser feito sem plateia, especulações e, principalmente, sem acusações ou julgamentos com provas que poderiam levá-la à morte.
A Dra. Mary estava decidida. Em meio a milhares de pensamentos, a ciência e a razão caminhavam lado a lado, trabalhando juntas. Uma seria o consolo da outra, pois a razão tentava se manter firme em sua mente, tão firme que não dera tempo sequer de viver sua dor. O consolo existira antes mesmo da dor. Ela previu a dor e já havia planejado o consolo muito antes, em uma de suas viagens como pesquisadora à Amazônia — a imensa floresta pertencente a uma colônia explorada na América do Sul. Ao finalizar o trajeto pelo quarteirão, atravessou a avenida e seguiu por uma rua paralela, onde os postes de iluminação, sustentados por alças de aço em forma de arabesco, seguravam lampiões — em sua maioria, já sem chamas. A paisagem de construções e prédios barrocos foi dando lugar ao breu e ao silêncio da mata úmida, que cercava o imenso terreno sombrio com seus moradores pacatos e silenciosos. Qualquer canto de cigarra que viesse das árvores parecia um grito, comparado ao silêncio opressivo que dominava o ambiente, independentemente da hora. Silêncio esse que era rompido apenas nos momentos em que a natureza cobrava seu tempo — sempre exaurido, segundo a lista da finitude da vida. Lista essa conferida rigorosamente pela Morte. Após sua conferência, não havia exceção, fosse conde, burguês ou plebeu: o silêncio sempre era rompido por um pranto desesperado.
Era apenas Mary e a noite, chuvosa e fria. Por mais que se ouvissem as gotas de chuva batendo nas folhas ao redor, internamente o silêncio travava um conflito com seus pensamentos. Seguindo pela rua deserta, avistou, a alguns metros, os gigantescos arabescos de aço preto que se encontravam no centro do grande portão — o limite que separava aqueles que ainda tinham o privilégio do tempo daqueles cujo tempo se esgotara, forçados a abraçar a própria inexistência. Mary se surpreendeu quando sentiu um toque em seu ombro. Ela não havia pensado em um plano B ou C. Mary tinha apenas um objetivo e precisava realizá-lo a qualquer custo, incluindo a própria vida. Levou a mão direita à parte interna do sobretudo, procurando o cabo da chave de fenda entalhada pelo marido. Mary a ajeitara de modo a não a incomodar, pois sabia que precisaria percorrer o trajeto com pressa, sem perda de tempo. Como uma serpente prestes a dar o bote, com o objeto em punho pronto para se defender, ela se virou... (09/07/2025)
LONDRES, JANEIRO DE 1818 (Cap. 02)
— Mary! Calma, calma. Sou eu!
O reconhecimento daquela voz, trouxe a Mary um alívio:
— Percy?
— Sim, querida! Sou eu.
Nesse momento, Mary dá um suspiro de alívio, fisicamente ele sente a tensão deixar seu físico e emocionalmente ela desaba. Ela já havia se acostumado a ser forte, não a desabar. Suas mãos deixam de procurar a chave de fenda, são retiradas do bolso e vão ao encontro do corpo quente, porém úmido de Percy. O choro acontece no mesmo momento do abraço.
Enquanto ele retribui o abraço e acaricia a cabeça de Mary derrubando o chapéu que estava sobre a cabeça dela, ele tenta se explicar:
— Fiquei preocupado e precisei vir. Não consegui fingir estar tudo bem.
— Mas e minha irmã? Seus pais? — Entre lágrimas ela continua entrelaçada em seus braços.
— Eu disse a eles que estava exausto e que me juntaria a você no quarto. Disse que precisávamos de um momento só nosso. Diante da situação e pelo horário eles compreenderam, mas insistiram em pernoitar em nossa casa. Me despedi de sua irmã e de meus pais, subi a escadaria, e me tranquei no quarto. na descida pela janela, acabei arranhando meu braço, mas nada preocupante.
Percy frente a frente com Mary, segura o rosto dela olhos a olhos com o dele:
— Mas eu te disse para não se preocupar, Percy! Se formos pegos ou levantarmos qualquer tipo de suspeita, poderíamos ser enforcados em praça pública!
— É um momento perturbador Mary! Quando imaginei você entrando neste cemitério sozinha e…Que Deus nos perdoe — Percy olha para o céu negro, manchado de gostas de chuva que vem ao encontro de seu rosto — Não tenho nem coragem de descrever o que estamos prestes a fazer. Por que não desistimos disso, seguimos nossa vida vivendo um dia de cada vez Mary?
Mary empurra Percy, limpando com o punho das mãos as últimas lágrimas que haviam escorrido em seu rosto, com passos pesados, segue mata adentro enquanto fala de forma furiosa:
— Percy Shelley, se você veio até aqui para tentar me convencer a desistir, espero com toda força de desejo que tenho em meu coração, que você se decepcione com você mesmo. Eu não mudarei de ideia! Eu não vou desistir!
Enquanto levava as duas mãos à cabeça, andando de um lado para o outro no meio da rua enlameada, Percy observava objeto por objeto ser arremessado de dentro da mata para fora. Primeiro, uma pá manual, em seguida, um enxadão de lâmina larga com cabo de madeira, um saco plástico com alguns cobertores dobrados dentro, e por último, sai Mary, com uma carrinhola apoiada nos braços.
— Por mais que ache essa situação um tanto absurda, Mary. Jamais te deixaria enfrentar tudo isso sozinha. — Percy tenta amenizar o stress de Mary sem sucesso.
— Mesmo se deixasse — responde ela enquanto organiza as ferramentas e todas as tralhas sobre a carriola e continua: — eu o faria do mesmo jeito Percy! Enquanto éramos somente eu e você, o mundo amanhecia e dada continuidade a existência de nossas vidas de uma maneira, mas… — sua voz embargou, sua respiração fica ofegante, e toda sua fortaleza desaba sobre o chão de lama, seus joelhos encontram o chão e as lágrimas se libertam de dentro de sua alma em luto e banham seu rosto, se misturando com toda a umidade que a chuva lhe trouxe, porém essa carrega uma dor — Ele era, era… era tudo que tínhamos. Era o nosso…
Percy se ajoelha ao seu lado, guia a cabeça de Mary até seu ombro, tira todas as ferramentas de suas mãos e guia os braços dela para um abraço. Por dentro ela caia em um penhasco onde teria soltado a mão do seu único filho, e por fora, ela estava fria que não havia diferenciação de sua frieza com uma madrugada fria, congelada e, talvez seu abraço não curasse sua angústia, pois ele também estava ferido, perdido em um luto sem solução. Era aquele o fato a se aceitar. Não haveria um milagre ou uma luz ao fim do túnel. Percy tentou ser forte, mas naquela madrugada, sua fortaleza também desabou. O que a fé poderia fazer já se fez, nem sempre a fé coopera para o que se espera, talvez o teste dela também seja um propósito sabe -se lá de quem? Ele também chorou. (16/07/2025)
LONDRES, JANEIRO DE 1818 (Cap. 03)
A chuva havia diminuído, mas o cheiro de terra molhada era mais forte do que nunca. O barulho da carriola sendo empurrada por entre os galhos e as pedras misturava-se ao som abafado das poças sendo pisadas. Mary caminhava na frente, determinada, como se cada passo fosse o único possível. Percy a seguia em silêncio, empurrando a carriola com as ferramentas e os cobertores dobrados com cuidado quase cerimonial.
Chegaram ao portão de ferro do cemitério. A estrutura, enferrujada e velha, emitiu um rangido fúnebre ao ser empurrada. Mary nem hesitou. Sabia o caminho de cor. Contara os passos durante o enterro. Agora os repetia como se recitasse um verso trágico de memória.
Pararam diante do túmulo. Não havia nome na lápide. Mary pedira isso. Só as iniciais, para confundir os olhos alheios. A terra parecia ter afundado um pouco, como se chorasse também. Mary se ajoelhou, passou os dedos sobre o pequeno "W.S." gravado em pedra e fechou os olhos por alguns segundos, sem dizer nada. Percy apenas aguardou. Sabia que aquele gesto breve guardava o peso de todas as palavras que ela não conseguia mais pronunciar.
Mary pegou a pá manual. Percy se adiantou com o enxadão.
— Deixe isso comigo por enquanto — disse ele, com a voz baixa, porém firme.
Mary assentiu, sem discutir. As primeiras pazadas foram lentas, cuidadosas. A terra estava fofa pela chuva, mas o frio da madrugada endurecia as camadas mais profundas. Cada golpe do enxadão parecia acordar fantasmas soterrados — do corpo, do luto, da escolha.
O tempo ali não era mais o mesmo. Meia hora? Uma hora? Não saberiam dizer. Quando a madeira do pequeno caixão enfim apareceu, ambos pararam. Suavam, apesar do frio. O silêncio voltou a pesar. Percy limpou a superfície do caixão com um pano e apoiou as mãos sobre ele, como se pedisse desculpas.
Mary se ajoelhou e tirou os pregos com um pé de cabra pequeno, embrulhado em tecido escuro. Quando a tampa se soltou, o cheiro não era forte — a baixa temperatura e o rápido sepultamento haviam poupado o corpo do filho de uma decomposição cruel.
William estava ali. Rígido, mas com os traços suaves ainda reconhecíveis. As pálpebras cerradas como se dormisse. Os lábios levemente entreabertos. Mary sufocou um grito e levou a mão à boca. Percy sentiu o mundo girar. Mas não podiam ceder agora.
Com todo cuidado, pegaram o corpo. Enrolaram-no em dois cobertores limpos. O tecido ainda cheirava a alfazema e carvão. Percy carregou o pequeno embrulho com a delicadeza de quem segura um recém-nascido.
Mary rapidamente começou a cobrir novamente o buraco. Alternavam-se, usando as ferramentas e as mãos. Compactaram a terra, espalharam folhas, galhos secos, e até jogaram por cima pequenas pedras que haviam recolhido no caminho. Era necessário disfarçar. O mundo não podia saber. Ainda não.
Quando terminaram, Mary recolocou a lápide e, de forma meticulosa, retirou do casaco um vidro com tinta escura e um pincel fino. Retocou as iniciais. W.S. ainda estava ali. Para o mundo, ele continuava ali.
O caminho de volta foi silencioso. O corpo envolto nos cobertores descansava sobre a carriola, agora puxada por Mary. Percy a iluminava com uma lanterna a óleo, o vidro embaçado pela neblina que começava a surgir do chão.
Ao chegarem à cabana nos fundos da propriedade — o laboratório improvisado que Percy preparara com semanas de antecedência, apesar de ter jurado que aquilo nunca seria usado — entraram com o corpo e trancaram a porta.
Lá dentro, um fogareiro mantinha o ambiente levemente aquecido. Livros de anatomia, frascos com líquidos, fios, elétrodos rudimentares e uma bancada de madeira ocupavam o espaço. No centro, uma mesa larga coberta com lençol branco.
Mary olhou para Percy. Ele hesitava. Ela não.
Com gestos suaves, desembrulhou o corpo. Os olhos marejados já não escondiam mais nada. O filho deles jazia ali. E a promessa que fizera a si mesma, no instante em que ele parara de respirar, ainda pulsava viva:
"Eu te trarei de volta."
Percy se aproximou, estendeu a mão e segurou a dela. Um pacto silencioso. A ciência, a loucura, o amor — tudo estava ali. E já não havia retorno. (23/07/2025)
LONDRES, JANEIRO DE 1818 (Cap. 04)
Dentro do laboratório, o silêncio pesava tanto quanto o luto que Mary carregava nos ombros curvados. A brisa fria que entrava por uma pequena fissura da janela fazia tremular a chama do fogareiro, projetando sombras trêmulas sobre os frascos e as anotações espalhadas. O tempo ali não era mais medido em horas, mas em batimentos — ou na ausência deles. Mary ajeitou cuidadosamente o corpo do filho sobre a mesa coberta com o lençol branco. Seus dedos tremiam, mas não hesitavam. Percy, ao fundo, preparava a substância com que ambos vinham trabalhando havia semanas: a solução extraída do cordyceps, um fungo raro, obtido nas matas da colônia, onde Mary estivera em expedição. Um organismo que, por algum capricho sombrio da natureza, era capaz de reanimar insetos mortos, fazendo com que seus corpos se movessem, mesmo que a consciência já tivesse se desfeito há muito tempo. Mas desta vez, não era um inseto. Era William.
— A concentração está maior… — murmurou Percy, enquanto coava a substância por um pano escurecido, como se a própria luz não devesse tocá-la. — Três vezes mais potente do que a anterior.
Mary assentiu, os olhos cravados no pequeno peito imóvel do filho. Ela tocou a pele dele — ainda fria, mas não gélida. A conservação havia sido eficaz. Uma lâmpada a óleo os iluminava fracamente, e sob sua luz tremeluzente, o laboratório parecia um altar profano, consagrado não à vida ou à morte, mas ao impossível. Em uma das bancadas, repousavam várias seringas rudimentares, tubos de vidro, eletrodos conectados a uma bobina improvisada, e um diário de couro aberto sobre páginas manchadas de tinta e esperanças. Percy trouxe o frasco com o extrato do fungo até Mary. O líquido tinha um tom púrpura-escuro, quase negro, viscoso como se a própria noite tivesse sido destilada ali dentro.
— Você tem certeza? — perguntou ele, a voz grave, quase um sussurro.
— Eu não posso não tentar — respondeu ela, os olhos fixos no filho. — Ele era nosso mundo.
Percy preparou a seringa. Introduziu a agulha em uma das veias ainda visíveis no braço pálido do menino. A inserção foi feita com delicadeza, como quem toca um relicário. Mary segurava a mão do filho, enquanto Percy injetava, milímetro por milímetro, a substância viva.
O líquido se espalhou sob a pele como tinta sendo sugada por papel seco. Por alguns segundos, nada aconteceu. Mary correu para a alavanca de indução elétrica. Os fios de cobre estavam conectados a placas metálicas posicionadas sobre o coração do garoto. Ela inspirou fundo, olhou uma última vez para Percy — que assentiu, resignado — e puxou a alavanca.
Um estalo seco cortou o silêncio.
O corpo de William tremeu levemente.
Mary ajustou a carga. Outra descarga.
Um espasmo nos dedos.
— Viu isso? — sussurrou Percy, aproximando-se, como se o menor som pudesse espantar o que quer que estivesse acontecendo ali.
Mary não respondeu. Suava frio. Mais uma descarga. Agora os olhos do menino se moveram sob as pálpebras. Quase imperceptível, como um resquício de sonho. Mas era algo. Ela se voltou rapidamente para o diário, rabiscando dados, tempo, reações. Percy segurava o pulso do garoto, procurando desesperadamente algum sinal de pulso. Nada ainda.
— A circulação... Talvez se combinarmos com o composto estimulante dos bulbos…
Mary já se antecipava, correndo até uma das estantes e derramando frascos sobre a mesa até encontrar o líquido âmbar que procurava. Misturou com precisão de alquimista a nova substância a um segundo tubo e preparou uma nova injeção. Mais uma vez, a agulha perfurou a pele. Mais uma vez, o corpo estremeceu. As veias, até então quase invisíveis, começaram a escurecer, como se o sangue, ou algo como sangue, começasse a circular. Lentamente. Hesitante. Mary estremeceu. Percy deixou escapar um soluço engasgado. O pequeno tórax se ergueu — ou pareceria erguer-se, por menos de um segundo. Um reflexo? Um milagre? Ou apenas o último espasmo de um corpo em desequilíbrio? Ambos se entreolharam, presos entre a esperança e o horror.
— Ele está... — começou Percy, mas não terminou a frase.
No exato momento em que Mary se inclinava para tocar o rosto do filho mais uma vez, algo os interrompeu. Um som do lado de fora. Passos. Lentos. Gravados na terra molhada, arranhando as pedras do chão. Mary se petrificou. Percy correu até a lamparina e apagou a chama com os dedos. A cabana mergulhou na penumbra. Só o vapor quente do fogareiro ainda desenhava sombras pelo teto. Os passos se aproximaram mais. Agora junto à parede de madeira. Silêncio. E então — a maçaneta da porta girou. (30/07/2025)
LONDRES, JANEIRO DE 1818 (Cap. 05)
A maçaneta rangeu como um sussurro de ossos velhos, e a porta se entreabriu. Mary e Percy ficaram imóveis, o silêncio entre eles mais pesado que o ar rarefeito. Um feixe pálido de luar atravessou a fresta, iluminando a figura que surgia, envolta num xale escuro, molhado pela chuva fina.
— Sou eu… — disse uma voz baixa, firme, mas cansada. — Lorena.
Mary soltou o ar que prendia no peito. As pernas cederam por um instante, e ela apoiou-se na mesa para não tombar.
Lorena entrou rapidamente, fechando a porta com o cuidado de quem sela um segredo. Tirou o capuz, revelando os cabelos presos com pressa, o rosto úmido, mas atento. Seus olhos percorreram o ambiente — a criança deitada sobre a mesa, os frascos ainda tremendo, a sombra das bobinas, o suor escorrendo pelo pescoço de Percy.
— Ninguém desconfiou — disse ela, retirando as luvas de couro, cada gesto preciso como os de uma cirurgiã. — O sepultamento foi breve. Silencioso. O coveiro acreditou que vocês estavam em casa, arrasados. Até elogiaram sua "força", Mary.
A mulher assentiu, ainda sem voz. Seus olhos não deixavam William, cujo peito permanecia imóvel agora, mas com as veias ainda escuras, como um rio soterrado prestes a vazar.
Lorena se aproximou da mesa, analisando o cenário como alguém acostumada com o limite entre o absurdo e o possível. Ela passou os dedos sobre a testa da criança, depois sobre o pulso, avaliando temperatura, textura, resposta. Havia um respeito cerimonial em seus movimentos, como se também ela acreditasse que aquilo era, de algum modo, sagrado.
— Precisa se recompor — disse, agora dirigindo-se a Mary. — Ambos precisam.
Percy tentou protestar, mas a voz não lhe saiu da garganta. Seu rosto estava cinzento. Mary, enfim, olhou para Lorena como quem acorda de um transe.
— Não posso deixá-lo assim… ainda pode… ainda pode haver uma resposta…
— E haverá. — Lorena a interrompeu com doçura firme. — Mas não agora. Não assim. Você está vestida com as roupas de Percy desde o enterro. Precisa sair desse papel. Voltar a ser… você.
Mary vacilou, olhou para as próprias mãos — sujas de tinta, suor, fragmentos de fungo ressecado. Vestia um colete largo demais, calças amarradas por um cinto improvisado. O disfarce fora necessário para manter-se invisível, para entrar e sair da colônia sem levantar suspeitas. Mas agora… agora o luto não precisava mais de máscaras. Apenas de coragem.
— Eu… — ela começou, mas Lorena a cortou com um gesto.
— Vá. Há água quente na bacia. Peguei suas roupas no armário. Ele — disse, apontando para Percy com um leve sorriso — pode ajudá-la. Eu fico aqui. Cuido do que for preciso. Se houver qualquer mudança, se algo… se ele… — sua voz hesitou, só por um segundo — eu saberei.
Mary permaneceu imóvel por mais um instante. Depois, como se apenas agora o peso da noite inteira se revelasse, assentiu. Tocou os cabelos da criança uma última vez, sussurrando algo ininteligível, e caminhou para os fundos da cabana. Percy a seguiu, lançando um olhar rápido para Lorena antes de desaparecer pelas cortinas.
Sozinha com William, Lorena respirou fundo. O cheiro do extrato ainda pairava no ar, adstringente, úmido, impossível de esquecer. A lâmpada a óleo, agora reacesa, lançava sombras mais suaves. O menino parecia dormir — mas não era sono. Era espera. Entre o tempo e o abismo.
Lorena se sentou com delicadeza. Abriu o diário de couro, leu as últimas anotações de Mary. Pegou um dos tubos de vidro e girou levemente entre os dedos. Algo na mistura parecia… vibrar. Como um leve tremor, quase imperceptível.
Ela olhou para William.
— Você já foi embora — sussurrou, — mas talvez… talvez só tenha se perdido no caminho.
E começou a escrever. Documentar. Esperar. (06/08/2025)
LONDRES, JANEIRO DE 1818 (Cap. 06)
Lorena documentava com cuidado. Cada detalhe, cada oscilação de cor sob a pele translúcida do menino, o comportamento do extrato após a indução elétrica, a lentidão com que as veias se tornavam visíveis como rios antigos despertando sob um inverno eterno.
Mas aos poucos, à medida que o silêncio tomava novamente o laboratório, algo a distraía. Não era o som de máquinas, nem o farfalhar da chama ou o vapor que subia do fogareiro. Era a própria presença de William, estendido ali, em um repouso que não era nem vida nem morte.
Lorena deixou a pena repousar ao lado do diário e se aproximou da mesa. Seus olhos vagaram pelo rosto do menino — ainda belo, ainda doce, como se estivesse apenas dormindo depois de um dia longo de travessuras.
E então, sem se dar conta, começou a falar.
— Lembra quando você caiu do cavalo e disse que não ia chorar, mesmo com o braço torto?
Ela sorriu, amarga.
— A Mary entrou em pânico, seu pai desmaiou, e eu… eu ri. Fiquei nervosa. Rimos juntos, lembra? Depois você chorou, claro. Mas só quando já estava no colo dela. Quando se sentiu seguro.
O sorriso se desfez.
— Você era minha primeira companhia. Meu melhor amigo. O menino que dividiu comigo a primeira torta roubada, a primeira leitura proibida, o primeiro segredo. Crescemos juntos… e agora você tá aí. Silencioso. Frio. Como se o tempo tivesse corrido só pra mim.
Ela passou os dedos pela franja do menino, afastando-a com carinho, como quem ajeita o cabelo de um irmão antes de dormir.
— Você me ensinou a plantar cebolas, a mexer com pólvora, a roubar livros da biblioteca do colégio. Você me prometeu que nunca ia me deixar pra trás. E agora?
Seu rosto endureceu. Os olhos estavam marejados, mas não cederiam.
— Eu sei o que estão fazendo. E sei que talvez não devêssemos. Mas… se existe alguma chance de te ouvir rir de novo… qualquer que seja o preço, eu pago.
Um tremor percorreu o dedo de William. Ou foi apenas sua mão cansada que tremeu, ao tocá-lo?
Lorena não se mexeu. Continuou ali. Apenas escutando. Esperando. Ouvindo o próprio coração pulsar como um tambor solitário no escuro.
Foi então que o rangido do piso a despertou. Passos. Leves, mas apressados. Percy surgiu pela cortina, o rosto ainda marcado pelo cansaço, mas com algo mais no olhar: tensão, talvez incômodo.
— Lorena… — disse, num tom baixo, como quem tenta manter as palavras longe dos ouvidos da criança adormecida. — Você… avisou seus pais de que viria pra cá?
Ela o encarou, confusa.
— Não. Não falei nada. Por quê?
Percy hesitou um segundo, e então soltou:
— Sua mãe está à porta. Está procurando por você.
Lorena empalideceu.
Por um instante, tudo pareceu paralisar outra vez — o tempo, o ar, o experimento, a própria esperança. Ela voltou os olhos para William, como se a criança pudesse lhe dar uma resposta. E então, com voz quase inaudível, murmurou:
— Ela não pode entrar.
E caminhou em direção à escuridão do corredor, onde o passado e o presente batiam à mesma porta. (13/08/2025)