
EDUARDO OGALVES
EDUARDO OGALVES

A ÚLTIMA CRIAÇÃO DE MARY SHELLY
Prezado Leitor, você terá contato semanalmente com um capítulo do romance 'A última criação de Mary Shelly', do autor Eduardo Ogalves, voltado para a temática 'Ficção Histórica'.
Eduardo Ogalves é Técnico de Enfermagem, graduado em Pedagogia, Letras - autor de dois livros: "Incondicional - Humanos buscam cura, anjos querem perdão" e "Sol Manchado" (contos), ambos pela Editora Uiclap.
-- Acompanhe de perto...
FOLHETIM 'ARAÇATUBA E REGIÃO' - DIA 19/07 - EDIÇÃO Nº 41
Londres, Janeiro de... (Cap. 03)
Em 26/07.
Londres, Janeiro de 1818 (Cap. 01)
A temperatura estava baixa, responsável por um frio de trincar os ossos para quem não se protegesse — detalhe que não era a maior preocupação da Dra. Mary naquela madrugada. Pelo contrário, o frio era, naquele momento, seu maior aliado. A mesma temperatura que promovia o frio intenso era a responsável por preservar qualquer cadáver que um dia tivera o privilégio de ser aquecido por um sangue vivo. Naquele instante, a vida era um privilégio, e a Dra. Mary, em suas teorias, estava a poucas horas de controlar esse privilégio de uma forma diferente.
Sua preocupação não era a estranheza da sociedade londrina em se perguntar aonde ela iria tão tarde, naquela noite chuvosa e fria. Até porque dificilmente alguém passaria por ela naquele horário, principalmente no caminho que seguia. Seu destino era afastado do centro da cidade: era necessário percorrer um curto trajeto pela avenida principal, para em seguida se enfiar em becos e atalhos até chegar ao destino. Ela não sentia medo de andar sozinha tão tarde. Daquele modo em que estava, não precisava temer. Não seria um alvo, como estava acostumada em um dia comum.
Talvez cruzasse com algum cachorro vira-lata, tentando se esconder em algum vão entre uma escadaria e outra, ou algum bêbado que, após exagerar nas doses, adormecera no trajeto de volta e decidira tirar um cochilo sobre o meio-fio de uma das principais avenidas londrinas. E mesmo que, por acaso, algum casal de amantes, perdidos na inocência do primeiro amor, perambulasse pelas avenidas e ruas de Londres e se deparasse com a Dra. Mary — se a conhecessem ou tivessem alguma amizade com ela — não a reconheceriam. Um homem de masculinidade frágil talvez até a olhasse com desconfiança, segurando forte a mão da companheira e, quem sabe, mudasse de lado na avenida, movido por um ciúme doentio.
Não bastasse a chuva, que se intensificava, o vento forte a envolvia cada vez mais, como um abraço áspero. Seus longos cabelos estavam sufocados sob o chapéu, contidos também por uma meia-calça, na qual ela cortara uma das pernas para improvisar uma touca. Precisava parecer um homem. Suas botas, o sobretudo e o chapéu já estavam completamente encharcados. Sentiu alívio ao lembrar que poderia ser pior se estivesse com o longo e pesado vestido preto: além de encharcado, estaria enlameado durante o longo percurso.
Seguiu apressada por um quarteirão onde havia uma construção ainda em estágio inicial — segundo a Gazeta de Londres, levaria anos para ser concluída, mas se tornaria a maior torre com relógio de Londres, quem sabe até do mundo. Enquanto passava, a lembrança da manchete do jornal a fez ficar preocupada com o horário. A madrugada era seu escudo, sua forma de ficar quase invisível, a melhor maneira de fazer o que precisava ser feito sem plateia, especulações e, principalmente, sem acusações ou julgamentos com provas que poderiam levá-la à morte.
A Dra. Mary estava decidida. Em meio a milhares de pensamentos, a ciência e a razão caminhavam lado a lado, trabalhando juntas. Uma seria o consolo da outra, pois a razão tentava se manter firme em sua mente, tão firme que não dera tempo sequer de viver sua dor. O consolo existira antes mesmo da dor. Ela previu a dor e já havia planejado o consolo muito antes, em uma de suas viagens como pesquisadora à Amazônia — a imensa floresta pertencente a uma colônia explorada na América do Sul. Ao finalizar o trajeto pelo quarteirão, atravessou a avenida e seguiu por uma rua paralela, onde os postes de iluminação, sustentados por alças de aço em forma de arabesco, seguravam lampiões — em sua maioria, já sem chamas. A paisagem de construções e prédios barrocos foi dando lugar ao breu e ao silêncio da mata úmida, que cercava o imenso terreno sombrio com seus moradores pacatos e silenciosos. Qualquer canto de cigarra que viesse das árvores parecia um grito, comparado ao silêncio opressivo que dominava o ambiente, independentemente da hora. Silêncio esse que era rompido apenas nos momentos em que a natureza cobrava seu tempo — sempre exaurido, segundo a lista da finitude da vida. Lista essa conferida rigorosamente pela Morte. Após sua conferência, não havia exceção, fosse conde, burguês ou plebeu: o silêncio sempre era rompido por um pranto desesperado.
Era apenas Mary e a noite, chuvosa e fria. Por mais que se ouvissem as gotas de chuva batendo nas folhas ao redor, internamente o silêncio travava um conflito com seus pensamentos. Seguindo pela rua deserta, avistou, a alguns metros, os gigantescos arabescos de aço preto que se encontravam no centro do grande portão — o limite que separava aqueles que ainda tinham o privilégio do tempo daqueles cujo tempo se esgotara, forçados a abraçar a própria inexistência. Mary se surpreendeu quando sentiu um toque em seu ombro. Ela não havia pensado em um plano B ou C. Mary tinha apenas um objetivo e precisava realizá-lo a qualquer custo, incluindo a própria vida. Levou a mão direita à parte interna do sobretudo, procurando o cabo da chave de fenda entalhada pelo marido. Mary a ajeitara de modo a não a incomodar, pois sabia que precisaria percorrer o trajeto com pressa, sem perda de tempo. Como uma serpente prestes a dar o bote, com o objeto em punho pronto para se defender, ela se virou... (10/07/2025)
Londres, Janeiro de 1818 (Cap. 02)
— Mary! Calma, calma. Sou eu!
O reconhecimento daquela voz, trouxe a Mary um alívio:
— Percy?
— Sim, querida! Sou eu.
Nesse momento, Mary dá um suspiro de alívio, fisicamente ele sente a tensão deixar seu físico e emocionalmente ela desaba. Ela já havia se acostumado a ser forte, não a desabar. Suas mãos deixam de procurar a chave de fenda, são retiradas do bolso e vão ao encontro do corpo quente, porém úmido de Percy. O choro acontece no mesmo momento do abraço.
Enquanto ele retribui o abraço e acaricia a cabeça de Mary derrubando o chapéu que estava sobre a cabeça dela, ele tenta se explicar:
— Fiquei preocupado e precisei vir. Não consegui fingir estar tudo bem.
— Mas e minha irmã? Seus pais? — Entre lágrimas ela continua entrelaçada em seus braços.
— Eu disse a eles que estava exausto e que me juntaria a você no quarto. Disse que precisávamos de um momento só nosso. Diante da situação e pelo horário eles compreenderam, mas insistiram em pernoitar em nossa casa. Me despedi de sua irmã e de meus pais, subi a escadaria, e me tranquei no quarto. na descida pela janela, acabei arranhando meu braço, mas nada preocupante.
Percy frente a frente com Mary, segura o rosto dela olhos a olhos com o dele:
— Mas eu te disse para não se preocupar, Percy! Se formos pegos ou levantarmos qualquer tipo de suspeita, poderíamos ser enforcados em praça pública!
— É um momento perturbador Mary! Quando imaginei você entrando neste cemitério sozinha e…Que Deus nos perdoe — Percy olha para o céu negro, manchado de gostas de chuva que vem ao encontro de seu rosto — Não tenho nem coragem de descrever o que estamos prestes a fazer. Por que não desistimos disso, seguimos nossa vida vivendo um dia de cada vez Mary?
Mary empurra Percy, limpando com o punho das mãos as últimas lágrimas que haviam escorrido em seu rosto, com passos pesados, segue mata adentro enquanto fala de forma furiosa:
— Percy Shelley, se você veio até aqui para tentar me convencer a desistir, espero com toda força de desejo que tenho em meu coração, que você se decepcione com você mesmo. Eu não mudarei de ideia! Eu não vou desistir!
Enquanto levava as duas mãos à cabeça, andando de um lado para o outro no meio da rua enlameada, Percy observava objeto por objeto ser arremessado de dentro da mata para fora. Primeiro, uma pá manual, em seguida, um enxadão de lâmina larga com cabo de madeira, um saco plástico com alguns cobertores dobrados dentro, e por último, sai Mary, com uma carrinhola apoiada nos braços.
— Por mais que ache essa situação um tanto absurda, Mary. Jamais te deixaria enfrentar tudo isso sozinha. — Percy tenta amenizar o stress de Mary sem sucesso.
— Mesmo se deixasse — responde ela enquanto organiza as ferramentas e todas as tralhas sobre a carriola e continua: — eu o faria do mesmo jeito Percy! Enquanto éramos somente eu e você, o mundo amanhecia e dada continuidade a existência de nossas vidas de uma maneira, mas… — sua voz embargou, sua respiração fica ofegante, e toda sua fortaleza desaba sobre o chão de lama, seus joelhos encontram o chão e as lágrimas se libertam de dentro de sua alma em luto e banham seu rosto, se misturando com toda a umidade que a chuva lhe trouxe, porém essa carrega uma dor — Ele era, era… era tudo que tínhamos. Era o nosso…
Percy se ajoelha ao seu lado, guia a cabeça de Mary até seu ombro, tira todas as ferramentas de suas mãos e guia os braços dela para um abraço. Por dentro ela caia em um penhasco onde teria soltado a mão do seu único filho, e por fora, ela estava fria que não havia diferenciação de sua frieza com uma madrugada fria, congelada e, talvez seu abraço não curasse sua angústia, pois ele também estava ferido, perdido em um luto sem solução. Era aquele o fato a se aceitar. Não haveria um milagre ou uma luz ao fim do túnel. Percy tentou ser forte, mas naquela madrugada, sua fortaleza também desabou. O que a fé poderia fazer já se fez, nem sempre a fé coopera para o que se espera, talvez o teste dela também seja um propósito sabe -se lá de quem? Ele também chorou. (12/07/2025)